Cachete - S. M. Antigamente, no Nordeste do Brasil, era assim que se chamava qualquer comprimido para dor.

terça-feira, 6 de abril de 2010

A Noite do General



No sábado 03/04/10, assisti ao programa que foi chamado de “Dossiê Globonews” e tem como entrevistador o Geneton Moraes. O que esperava ser uma entrevista inteligente e atrativa, de uma vez que tínhamos de um lado um grande jornalista e do outro um general formado pela Escola Superior de Guerra e Ex-Ministro de Estado, não passou de um conglomerado de metáforas óbvias, sofismas e silogismos banais, em que pesem a inteligência do entrevistador e a experiência do entrevistado.

Expressões do tipo: “Nós não somos torturadores. Somos soldados em guerra.” Faziam parte do jargão do Velho General de pijamas que se não demonstravam baixo quociente intelectual pareciam fazer parte de um trabalho de auto-esquecimento do que ele é e do que realmente representa um soldado honrado em uma guerra. Parece que o velho general esqueceu que em 1964 já havia a Convenção de Genebra que reúne tratados internacionais que vão de 1864 a 1949 que iniciam a história da defesa dos direitos humanos, regulando em tempos de guerra a defesa das populações civis bem como dos soldados feridos ou aprisionados. É o uso do cachimbo que entorta a boca.

Ou seja, se a luta armada era uma guerra, deveria ter sido regulamentada por esses tratados. Mas pelo que vimos, só era guerra quando os militares “ defendiam o Brasil” atacando jornalistas, intelectuais, estudantes e guerrilheiros. Quando estes se defendiam era terrorismo. Acho que o general aplicava em vez da Convenção de Genebra a célebre frase do filósofo francês Jean Paul Sartre: “O inferno são os outros”.

Uma citação feita pelo Velho General reforça mais ainda esse maniqueísmo cego quando ele diz: ”O soldado é um cidadão no exercício cívico da violência”. Existe civismo ou civilidade para a violência? Creio que não senhor, por mais cruel que um ser humano possa ser. Hoje chamamos tal “exercício cívico” de sociopatia, que nada mais é que um embotamento mental que gera a incapacidade de ter sentimentos e a habilidade para “coisificar” o outro como se fora mero objeto. Freud, o velho sábio vienense nos traz em sua ciência psicanalítica o conceito de projeção. Ou seja, projetamos no outro aquilo que não suportamos ver em nós.

Um dos momentos “brilhantes” da entrevista foi quando o Velho General na tentativa de justificar muitos dos absurdos tentou explicar que não havia exilados nos “anos de chumbo”, pois, “exílio é quando você recebe um documento do governo” autorizando-o a sair do país. E citou para isso a história grega e romana. Ora, quem saía de um país com um documento de exilio, historicamente sempre foram os privilegiados. O imperador do Brasil, Dom Pedro II foi exilado. Era um príncipe de importante casa real européia. Tiradentes era um simples alferes: foi assassinado. Frei Caneca era um simples pároco. Também foi assassinado. O único documento que o governo dá para se sair do país chama-se : pas-sa-por-te. Até mesmo estes, em regimes de exceção são confiscados ou utilizando-me de metáforas que me parecem familiares ao Velho General: “rigorosamente controlados para o bem dos cidadãos”.

Os exilados da “gloriosa” e seus afins, como bem disse o entrevistado, eram fugitivos. Mas por que alguém foge, deixa sua família, seus velhos pais e seus amigos sem uma razão de ser? É que entre o ser “exilado” e o ser “fugitivo” tem outro adjetivo de enorme importância: perseguido. E esse adjetivo a aquela época era derivado de um verbo: perseguir. E para ser perseguido, no dizer do Velho General era preciso ser “antisistêmico”, termo mais “higiênico” do que subversivo. Esse mais usado pela “gentalha” comum ou soldados de baixa patente.

O entrevistado me fez lembrar os eufemismos da “Santa” Inquisição: “Deus não quer a morte do pecador, mas a do pecado”.

As regras dos tribunais inquisitoriais eram bastante parecidas com as regras dos tribunais militares dos “anos de chumbo”. A única diferença é que a Igreja Católica conseguiu num ato pessoal e de extrema humildade do Papa João Paulo II admitir seus erros e mais ainda, pedir perdão. O avião desse Sumo Pontífice passou a chamar-se Galileu Galilei. E como esse genial senhor sabia que não se peca somente por atos, mas por “palavras, atos e omissões”, humildemente pediu desculpas a Comunidade Judaica pela omissão da Igreja durante o nazismo.

Alguém se lembra de Zuzu Angel ter recebido um pedido de perdão? Ou será que temos algum avião (Não precisa ser o nosso air force one)tanque ou navio com com o nome de Lamarca, Gregório Bezerra ou Miguel Arraes de Alencar? Não me lembro. A humildade é uma das maiores, senão a maior virtude humana.

Falando sobre o “combate as ações antisistêmicas”, vulgo tortura, o entrevistado disse que era uma “mancha microscópica”. Mas uma mancha é sempre uma mancha, não importa que tamanho tenha. O que seria de um dólmã militar com “apenas uma mancha microscópica”. Seria passível de punição o soldado que o portasse? Além do mais senhor, um crime não se avalia pela quantidade de vítimas, mas pela intenção. Daí a grande diferença entre atos dolosos e atos culposos. Se um e, apenas um “antisistêmico” houvesse perecido ( e sabemos que não foi apenas um) por práticas de combate, já seria demais para uma pátria mãe, de uma vez que é sina das mães protegerem os filhos e até puni-los brandamente e com o devido cuidado, não matá-los. Isto sem falar que o mandamento sagrado é escrito no imperativo: Não matarás!

“A sociedade veio pedir às forças armadas que fizessem a revolução de 64”, disse o entrevistado. Eu tinha sete anos e não me lembro desse pedido. E olhe que eu tenho excelente memória! Mas há coisas que eu me lembro muito bem: lembro da minha escola ser fechada, pois era do Movimento de Cultura Popular. Lá eu fui muito bem alfabetizada como se pode perceber nos meus escritos. Lembro dos meus professores fugindo ou sumindo (bando de paranóicos! Fugir por que? se não havia razão). Lembro do meu velho pai ainda jovem e filho de um desembargador, arriscando a vida para ajudar amigos ou seus filhos a fugirem e algumas vezes oferecer nossa casa como refúgio. Lembro do meu dentista o Doutor Valteir que tinha uma enorme paciência com a minha condição de filha única e mimada. Lembro da tristeza de ver meu governador sair prisioneiro e algemado do Palácio do Campo das Princesas. E isso sem falar do ilustre grupo do Mestre Paulo Freire que saiu do Brasil disfarçado de freira, graças a conivência de um grande “antisistêmico” de alta periculosidade chamado Dom Hélder Câmara e de um certo Padre Marcelo Santos de quem tenho muito orgulho de ter sido esposa, em que pese a diferença de idade e a grandeza do intelecto dele. Lembro de pais e mães chorando na minha casa lá no bairro do Barro, onde conheci Pelópidas Silveira. É, crianças são cruéis. E são mais cruéis ainda quando tem boa memória. E o pior, elas crescem.

Por fim a pérola da noite: “O Regime Militar salvou o Brasil de se tornar uma república criminosa e assassina”. Será mesmo?! Há um adágio popular que diz: Deve-se ter muito cuidado quando se vai combater monstros, pois corre-se o risco de nos tornarmos piores que eles.

Em sua arrogância os senhores se arvoraram pensadores do povo. Obrigada! Não admito que pensem por mim!

Será que tudo isso não foi uma Vitória de Pirro? Será que como o general histórico, o “Regime” não empolgou-se tanto com o gosto de sangue que quando conseguiu parar só havia cadáveres ao seu redor?

O senhor diz que “a vitória foi nossa”. Perdoe-me general, mas a vitória foi nossa; de todos os “antisistêmicos e seus descendentes; dos torturados, das mulheres violentadas e dos cadáveres dos seus bebês brutalmente assassinados. A vitória foi de cada “Tancredo”, de cada “Doutor Ulisses” e de cada um que se indignou com as “táticas” usadas. A vitória foi de cada um de nós que ama esse país e que o constrói todos os dias com trabalho,honra e dignidade. Faço minhas as palavras do Condor Baiano , o poeta Castro Alves:
“Auriverde pendão da minha terra
Que a brisa do Brasil beija e balança.
Estandarte que a luz do sol encerra
Nas promessas divinas da esperança.
Antes te houvessem rôto na batalha
Que servires a um povo de mortalha.”

Durmam bem Wladmir Herzog, Lamarca, Stuart e Zuzu Angel e todos os outros! Vocês estão envoltos em uma linda mortalha verde e amarela. Bons sonhos. Naquele sábado do programa, perdoe-me Geneton, mas eu devia ter ido dormir.

ROSA - A DE LUXEMBURGO

Do Blog da Minha Cumadi Fulozinha

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(Joseph Pulitzer)