Cachete - S. M. Antigamente, no Nordeste do Brasil, era assim que se chamava qualquer comprimido para dor.

quarta-feira, 13 de julho de 2011

Luiz Berto: Meu Amigo Henrique

(Este texto foi publicado no JBF no dia 28 de maio de 2009. Hoje, novamente 28 de maio, republico para homenagear a memória de um cabra que mora na minha estima)
Eu morava numa pensão na Rua da Concórdia, ao lado do Colégio Carneiro Leão e vivia de uma mesada semanal que meu pai trazia às quintas-feiras, quando vinha de trem de Palmares pro Recife, a fim de fazer compras no Mercado de São José pra abastecer a sua bodega no interior.
Com frequência quase semanal, eu gastava a mesada em uma única noite, num puteiro que existia num primeiro andar da Rua Duque de Caxias, comendo uma rapariga por nome de Neuzinha, que adorava trepar com aquele rapazinho fogoso de 17 anos.
No quarto da pensão, que eu dividia com um sujeito chamado Paulo, operário da fábrica de borracha sintética Coperbo, no Cabo, havia um fogareiro a alcool onde eu fazia café pra enganar a fome quando o dinheiro acabava.
Mas, quando eu não aguentava mais o caldo-de-cana com pão doce e a fome apertava mesmo, eu pegava o ônibus da viação Nápoles e ia pra Olinda. Descia no pé da ladeira e subia bem devagar pra apreciar aquela paisagem encantada lá embaixo. Uma paisagem que eu decorei e que descrevi com detalhes num capítulo d’O Romance da Besta Fubana. Eu chegava no seminário e esperava na portaria até Henrique vir me buscar e me levar pro seu alojamento, um espaço que ele dividia com outro seminarista-maior e que era atulhado de livros do chão até o teto. As paredes seculares da construção ressaltavam aquele ambiente de estudos e de meditação.
Na hora do almoço eu entrava na fila dos seminaristas, entre Henrique e um cearense chamado Moacir, e comia aquele rango gostoso preparado pelas freiras que serviam na instituição. Antes, todos de pé, entoavam em coro o agradecimento, num espetáculo tão bonito e tocante que até hoje ressoa em meus ouvidos:
“Abençoai, Senhor, esta refeição”.
Após um pequeno momento de silêncio, começava a doce zuada dos pratos, dos talheres e das conversas no imenso salão.
O reitor do seminário, Padre Marcelo Carvalheira, ficava sentado numa mesa à parte, ao lado de outros padres-professores, presidindo aquela grande celebração diária.
Era comum um dos seminaristas subir ao púlpito que havia no refeitório e pedir silêncio pra fazer uma leitura. O silêncio se estabelecia de imediato como só seria possível numa comunidade disciplinada e consciente como aquela.
Em geral as leituras nunca eram sobre temas religiosos. Invariavelmente tratavam de temas políticos, tão comuns naquela época agitada e de profundas divisões entre a direita e a esquerda, no inesquecível período da guerra fria. O seminário, altamente politizado e menina-dos-olhos do arcebispo Dom Hélder Câmara, era em peso “de esquerda”. Assim como Henrique e Moacir, meus dois amigos que em breve se tornariam padres.
Henrique fez a minha cabeça, me deu vários livros de presente e eu perdi todos eles junto com minha biblioteca inteira numa chuvarada que caiu no galpão aos fundos da casa onde eu morava em Brasília. Todos os livros tinham uma dedicatória com a sua caligrafia redonda e caprichada, entre eles um livro intitulado “Deus e o Mal” de um teólogo francês cujo nome eu não me lembro.
Como presidente do meu grêmio no Ginásio de Palmares e ativista da política estudantil, levei Henrique à minha cidade duas vezes pra participar de palestras e debates. Eu tinha uma admiração profunda pela sua inteligência, pela sua sede insaciável de leituras e de conhecimento.
Me perdi nas curvas deste mundo, fiz minha vida na capital federal e, num dia de semana, na repartição onde eu trabalhava, eu folheava a revista Manchete e tomei um susto que me deixou pálido e eu tive que me segurar pra não “ter um troço”. A revista estampava uma foto em página dupla: Henrique morto, o rosto desfigurado pelas torturas que sofrera e largado num matagal na Cidade Universitária, aqui no Recife. O assunto foi tema de reportagens no mundo inteiro.
padre-henrique
Os odientos agentes da repressão e da ditadura militar em Pernambuco não tiveram coragem e audácia bastante pra matar Dom Hélder e resolveram se vingar do arcebispo sequestrando, torturando e matando um dos seus mais próximos colaboradores, o jovem Padre Antonio Henrique Pereira Neto, conhecido como Padre Henrique, que tinha então apenas 28 anos de idade e um brilhante futuro pela frente na sua carreira eclesiástica e na sua vida de dedicação ao próximo.
Hoje, dia 28 de maio de 2009, faz 40 anos que assassinaram Henrique covardemente.
Sinto uma saudade da porra daquele dentuço baixinho e inteligente, que eu seguia como uma sombra e cuja enorme cultura, apesar da pouca idade, me motivava e me fazia ficar pensando que um dia eu iria saber tanto quanto ele e ler tanto quanto ele já havia lido. Era meu modelo de ser gente.
Recife inteira sabe quem foram os militares, da Polícia e de alguns órgãos das Forças Armadas, todos agentes da repressão clandestina, que o sequestraram numa Rural Willys, que o torturaram barbaramente e que o mataram de forma tão covarde. Mas o inquérito, uma farsa montada pelas autoridades da época, nunca apontou os culpados e foi arquivado muitos anos depois por falta de provas. Um escárnio que ainda tem tempo de ser reparado.
Um abração, Henrique, gosto mais ainda de tu hoje do que quando tu era vivo. Quer dizer, tu estás mais vivo do que nunca na minha cabeça e no meu coração.



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"Com o tempo, uma imprensa cínica, mercenária, demagógica e corrupta formará um público tão vil quanto ela mesma."
(Joseph Pulitzer)