Cachete - S. M. Antigamente, no Nordeste do Brasil, era assim que se chamava qualquer comprimido para dor.

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Bacuri - O Martírio do Guerrilheiro


Bacuri (codinome Rafael) era um dos guerrilheiros mais “façanhudos”, chegando inclusive à passar por um barreira policial abrindo caminho à bala. Foi um dos militantes que participaram do sequestro do embaixador alemão. Sua morte na tortura foi uma das mais cruéis e se tornou símbolo do terror da repressão militar. Nesse trecho do livro Viagem à Luta Armada, Carlos Eugênio Paz conta como Bacuri, através de telefonemas ameaçadores para o DOICODI, conseguiu libertar sua mulher Letícia, que estava grávida. 
Que as novas gerações conheçam a história de Eduardo Colem Leite, o Bacuri.

AS TAREFAS de implantar Altino, preparar a Quinzena e conseguir dinheiro caminham a contento, mas recebemos um golpe irreparável, a queda de Rafael no Rio de Janeiro. Um capitão do serviço secreto do Exército, infiltrado na FL (Frente de Libertação Nacional), pequena organização dirigida pelo ex-major Cerqueira, entrega nosso combatente, durante levantamento do embaixador inglês, à equipe de busca e tortura do deIegado do DOPS-SP, responsável pelo assassinato de Fabiano. Começa o martírio de um militante inestimável e nossa luta desesperada para salvá-lo das garras de seus algozes.

Por que tudo aconteceu com Rafael? Penso nisso do meu túnel, minhas seringas, meus espelhos e meus sonhos, Às vezes julgo encontrar a resposta, de repente as imagens se obscurecem e a certeza se esvai. Rafael era um grande quadro de ação e sabemos o tratamento que eles recebiam nas mãos dos torturadores, mas o caso dele foi ímpar, pelos requintes de crueldade. Torturado semanas a fio, com algumas pausas para recuperar as forças e voltar ao sofrimento, até a morte. Não abriu pontos, mas continuou a apanhar como se ainda pudesse fazê-lo. Não conhecia aparelhos, mas os choques não paravam. A Organização sabia de sua prisão, mas o famigerado delegado disputava Rafael com o DOl-CODI, se aliando ao CENIMAR, escondendo-o em delegacias do subúrbio de São Paulo, somente para ter o prazer de comandar sua destruição. Podiam ter matado Rafael na rua, estava desarmado graças a um ardil do traidor, mas fizeram questão de prendê-lo vivo. As informações que tinha se tornaram obsoletas e seguiam torturando-o como se disso dependesse o fim da luta armada no Brasil. Já falei de seu olhar e de seu sorriso, mas é dificil descrever a luminosidade que transmitia sua presença. Sua dedicação era emocionante, não perdia tempo, agia e pensava os destinos da luta, incentivando os companheiros a fazerem o mesmo. Estive presente em dois momentos terríveis de sua vida: a morte trágica de Alberto e a prisão de Letícia, sua companheira, grávida de poucos meses.

EU E MARCELA vivemos em um quarto isolado na casa de Rafael, onde morreu Alberto, reservado para futuros seqüestros e situações de emergência, enquanto procuramos um imóvel adequado para montar um aparelho. Uma tarde, voltamos de olhos fechados para não conhecermos a localização, quando Rafael, nervoso, ordena: - Abram os olhos, deu merda.
Engatilho a matraca, pronto para o combate, e olho na direção que meu companheiro aponta. Letícia está sendo presa e não podemos fazer nada, são muitos, os homens do DOl-CODI, morreríamos todos.
— Filhos-da-puta, prenderam Letícia e ela está grávida, vão matá-la e ao bebê para saber onde estou. Vou ligar para o vizinho tentando um contato, talvez sabendo que estou informado da queda ela tenha uma chance. Vamos sair da área, está muito perigoso por aqui.
Rodamos até uma padaria tranqüila nas cercanias do Ibirapuera, pedimos cafés e ocupamos o telefone, costas guardadas por Marcela. Rafael liga para o vizinho e pede que chame Letícia, eles impedem o contato. Resolvemos telefonar para o comandante do II Exército, ele não atende, Rafael fala com o ajudante-de-ordens, um tenente-coronel.
— Aqui é Rafael, guerrilheiro da ALN. O DOl-CODI acabou de prender minha mulher e vão torturá-la para me entregar. Não há necessidade disso, assistimos a sua prisão, não tem mais informações a dar. Seu comandante responde pela vida dela e a do bebê e, se algo acontecer, não descansaremos enquanto não matá-lo. Transmita a mensagem imediatamente, senão será você o responsável. Volto a chamar para saber o que o general decidiu.
Ainda não estamos satisfeitos, ligo para o DOl-CODI.
— Quem é o comandante da equipe de serviço?
A melhor maneira de fazer um militar se mexer é dar voz de comando.
— Capitão Maurício... quem quer falar com ele?
— Diga que é Clamart,* comandante militar da ALN. (Carlos Eugênio usava o nome de guerra “Clemente’ mas também ocultava a sua identidade como “Clamart”.)
Alguns minutos se passam, percebo o alvoroço que meu telefonema causa, pelas imprecações proferidas sem o cuidado de bloquear o fone.
— Alô, é você mesmo, seu terrorista filho-da-puta... quer se entregar ou agora se diverte em passar trote?
— Filho-da-puta é você que tortura prisioneiros, não tenho tempo para brincar e não sou homem de me entregar, mas tenho uma proposta. Eu e Rafael voltávamos para casa e presenciamos a prisão de Letícia. Não adianta torturá-la, não pode entregar ninguém e não conhece nenhum esquema, estava afastada da miitância direta porque espera um filho de Rafael. Trocamos a vida dela e a do bebê pela vida do general- comandante do II Exército. Exigimos sua apresentação à imprensa para que todos saibam que está presa.
— Está blefando, Clamart, não tem condições de cumprir essa ameaça.
— Ando atrás dele há algum tempo e localizei o fusca vermelho que usa para visitar a amante, incógnito e sem segurança. Podem mudar o esquema que descubro o novo, só o deixo em paz se aceitar nosso trato, Letícia e o bebê devem viver.
— Seu terrorista de merda, eu te pego mais dia menos dia e terei o prazer de te encher de porrada e de choque nos culhões, vou fazer picadinho, te matar bem devagar... Comunico a proposta a meus superiores, infelizmente não decido nada, senão te mandava à puta- que-o-pariu.
— Não adianta bater o pé... mudo de bairro e volto a ligar dentro de meia hora, torturador covarde, pau-mandado...
Pego o volante e escolho Perdizes, fazendo um pouco de hora no Sumaré. Calados e sérios, torcemos por Letícia e seu rebento. Esse trato não evitará sofrimentos, mas pode ajudar a salvar duas vidas. De um botequim da rua Turiassu, tentamos o contato. O telefone do general está ocupado, ligo para a Tutóia.
— Chame o Maurício, é o Clamart... Nos tornamos inimigos íntimos. Novo alvoroço, gritos, passos apressados.
— Alô, Clamart, o trato foi aceito, apresentaremos Letícia à imprensa, e o bebê vai nascer. Em troca vocês esquecem o general e não divulgam a história do fusca e da amante.
— Fechado, mas saiba que você não está incluído nisso, se o encontro, mando bala, criminoso demente.
Rafael está aliviado, mas triste como na noite de Alberto. Dois golpes terríveis em tão pouco tempo... Temo por ele, sofro com ele, olho Marcela, penso no meu sonho de ter um filho, e entendo o que ele sofre.
Letícia é apresentada à imprensa, aproveitam para dizer que é uma prova da inexistência de torturas, sai da prisão, escapa do país e parte para o exílio. Reconstrói a vida ao lado de Leto, meigo e solidário, tenta recuperar suas lembranças. Rafaela nasce e cresce como mesmo rosto e o olhar translúcido de meu amigo. Espero que o peso da ausência de um pai tão extraordinário não a impeça de ser feliz como ele queria que fosse, afinal deu a vida por isso. Sou testemunha do amor de Rafael por todas as crianças e em especial pela linda criança dele, que amou sem conhecer. Tenho certeza de que os últimos pensamentos dele foram para Letícia e Rafaela.

Rafael acompanhou de perto o início de nosso romance, foi em sua casa que nosso amor se consumou.
— Vamos fazer amor, vou conseguir...
Esperei tanto esse convite... Amei Marcela em segredo, não tinha o direito de interferir em sua relação com Assad. Declarei-me com o olhar na segunda vez que a vi, quando veio para São Paulo após a queda de seu companheiro. Perdemos Alberto juntos, ela me deu carinho e ternura. Nos víamos todos os dias, a atração crescia, mas dormimos várias semanas na mesma cama sem nos tocarmos, a lembrança de Assad na tortura nos impedia. Quando seqüestramos o embaixador alemão no Rio, com a participação de Célio e o comando de Rafael, em frente com a VR, incluímos Assad na lista. Os companheiros chegaram sãos e salvos à Argélia e nos sentimos livres para viver nossa febre.
Noite plena de prazer, as peles suadas, as mãos ávidas, nos amamos sem sombras e sem pesadelos. Compartilhamos um orgasmo inesquecível e nem nos lembramos de que Alberto morrera naquela cama.

Tentamos arrancar Rafael das mãos da polícia duas vezes, uma da delegacia de Vila Rica — SP, ações frustradas no último momento pela interferência funesta de um infiltrado no MT, que tempos depois foi responsável pela queda e morte de companheiros dessa organização. Aceleramos os preparativos da Quinzena, escolhendo dois nomes quentes para seqüestrar e trocar por Rafael e outros combatentes presos. Sabendo do ódio que tinham pelo companheiro, estávamos dispostos a trocá-lo mano a mano por um deles. Fizemos o possível, mas não foi o bastante. Os órgãos de repressão forjaram uma fuga de Rafael e, quando o MR seqüestrou o embaixador suíço no Rio de Janeiro, sabendo que Rafael seria um dos nomes de qualquer lista, o executaram a sangue-frio. E, cinicamente, declararam que havia sido localizado na Baixada Santista, reagira à prisão e morrera em tiroteio com as forças da ordem. Crime bárbaro. Será, espero, conhecido e reprovado por toda a nação. Rafael foi trucidado, tentaram manchá-lo com mentiras, mas só conseguiram matá-lo. Na memória daqueles tempos, quando a História der a palavra final, ele será lembrado como exemplo para as futuras gerações, aquelas que saberão que nem todos se calaram. Enfim entendo o que aconteceu a Rafael, ele era forte demais para ser quebrado, digno demais para tempos tão sujos, puro demais para sobreviver à infâmia. Ele tinha um pouco do que cada um de nós tinha de melhor. Matando-o, tiveram a ilusão de nos matar a todos.

p. 151-157

PAZ, Carlos Eugênio. Viagem à Luta Armada: memórias da guerrilha. Rio de Janeiro: BestBolso, 2008.

Veja entrevistas com ex-guerrilheiros:

Nenhum comentário:

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...

"Com o tempo, uma imprensa cínica, mercenária, demagógica e corrupta formará um público tão vil quanto ela mesma."
(Joseph Pulitzer)