Um legítimo Pernambucano
Dentro de poucos meses estará navegando nos oceanos ao redor do mundo o petroleiro João Cândido, fabricado no Estaleiro Atlântico Sul, em Suape, município de Ipojuca, situado 30 km ao sul do Recife. Até alguns anos atrás o local do estaleiro era um grande areal, na região da Mata Sul de Pernambuco, cuja economia era baseada na tradicional cultura da cana-de-açúcar, e em tempos recentes também no turismo, por conta das belas praias tropicais de águas mornas.
Em 2003, por orientação do Presidente Lula, a Petrobras anunciou que passaria a comprar petroleiros, plataformas e navios de transportes fabricados no Brasil. Os empresários interessados em fabricar navios poderiam receber financiamentos do Fundo de Marinha Mercante e do BNDES. Logo vários grupos empresariais se formaram para criar estaleiros em Suape (PE), no Rio Grande (RS), e para soerguer os antigos estaleiros sucateados no Rio de Janeiro. Eles participaram das licitações da Transpetro, o braço naval da Petrobras, assinaram contratos de encomendas e começaram a construir suas instalações, treinar e selecionar pessoal para fabricar navios.
Na região da Mata Sul de Pernambuco houve uma verdadeira revolução. Até então a maioria dos homens só tinha emprego na época da safra de cana, grande parte como bóias-frias. Ou então como funcionários dos hotéis. As mulheres tinham poucas opções além de serem donas de casa. Milhares de pessoas se inscreveram para fazer cursos de soldador, ferramenteiro, torneiro, eletricista, muitos oferecidos pelo SENAI com apoio do Programa de Mobilização da Indústria Nacional de Petróleo e Gás, o PROMIMP. Foi o governo que tomou a decisão de recuperar e dinamizar a indústria naval brasileira. O empresariado nacional enxergou novas oportunidades e respondeu aos desafios.
Processo semelhante ocorre em todos países que se industrializaram. Os governos formulam políticas industriais e criam instrumentos de apoio, contratando empresas para desenvolver produtos com recursos não-reembolsáveis, financiando e concedendo incentivos fiscais para a produção, assegurando a compra dos produtos, e também protegendo seus mercados contra a importação de produtos similares. Os empresários entram com coragem, capacidade de gestão, com ambição e, as vezes, com recursos próprios.
Casos emblemáticos são o da indústria de micro-eletrônica, da qual o mundo hoje tanto depende, que foi criada nos Estados Unidos com forte apoio do programa espacial da NASA, e da indústria aero-espacial, estimulada e mantida pelas encomendas das forças armadas. Exemplo recente do protecionismo está no cancelamento pelo governo americano do contrato de compra de aviões da Embraer, que tinha vencido licitação da Força Aérea dos EUA.
Em 2007 começou a ser construído o petroleiro João Cândido, formado por milhares de chapas de aço, soldadas manualmente uma a uma, como são feitos os navios em todo o mundo. A estrutura e a carcaça do navio foram construídas dentro do dique seco. Em 2010, com a estrutura e a parte externa do navio concluídas, as comportas do dique foram abertas, ele foi inundado, o navio flutuou e foi lançado ao mar. Desde então trabalha-se na construção do recheio do navio, instalações, máquinas e equipamentos, com o navio flutuando ancorado no cais do estaleiro, deixando o dique seco para a montagem de outro navio.
Por isso o João Cândido foi lançado ao mar em 2010 e ainda não está em operação. É o primeiro navio construído em Pernambuco. É verdade que houve atrasos na fabricação de suas instalações. Certamente houve erros. Mas não erra quem não faz. E não se aprende sem errar. O Estaleiro Atlântico Sul emprega hoje cerca de 5 mil pessoas e gera cerca de 25 mil empregos indiretos. Os estaleiros em operação no Brasil empregam diretamente mais de 50 mil pessoas. A grande maioria estaria sem emprego se o Governo Lula não tivesse decidido revitalizar nossa indústria naval.
No último domingo milhares de leitores leram em diversos jornais do Brasil a celebrada coluna do Élio Gaspari, escritor e jornalista do maior respeito, de quem sou admirador e leitor assíduo. Intitulado “Reapareceu o mico da construção naval”, o artigo critica o que chama de anabolização da indústria naval brasileira pelo Governo Lula. Ele afirma que “de cada 10 operários, 8 trabalham para encomendas da Petrobras. Tudo bem, mas um navio que custa US$ 60 milhões em Pindorama sai por US$ 35 milhões em outros países. A Vale, que não é boba, contrata navios na China.”
Não pude deixar de lembrar o editorial de um grande jornal brasileiro do dia 8 de outubro de 1953, poucos dias após o Congresso Nacional aprovar a criação da Petrobras. “A atitude do governo federal em relação ao problema do petróleo denuncia absoluta irresponsabilidade em face dos interesses nacionais. Quanto à urgente necessidade de tudo se fazer com o objetivo de prospectar e explorar as riquezas pretrolíferas que o nosso subsolo porventura encerre, a solução encontrada foi criação da Petrobras, que onerará excessivamente os contribuintes, a ponto de prejudicar a economia nacional, sem nos trazer a menor esperança de resultados positivos. A Petrobrás significará um considerável desperdício de dinheiro e de tempo, atestando nossa incapacidade de resolver um dos mais urgentes problemas econômicos nacionais.”
O grande jornal estava a serviço das classes mais conservadoras do Brasil, com seus preconceitos e grandes interesses. O Gaspari certamente não está a serviço das mesmas classes. Mas nem por isso deixa de servir certos interesses, quando usa de sua autoridade e seu prestígio para escrever artigo com tamanho engano.
Ele aponta erros na fabricação de navios no Brasil, mas não relembra que há poucos meses atrás, um navio importado pela Vale não suportou a carga de minério num porto do Maranhão e quase causou um grande desastre ambiental. E ao comparar o preço do navio fabricado no Brasil com o do importado, ele não considera o enorme valor da geração de milhares de empregos no Brasil. E não leva em conta que a industrialização do País não pode ser feita ao bel prazer das empresas estrangeiras que aqui se instalam, atraídas por nosso grande mercado. O País não está condenado a ser eterno exportador de matérias primas e importador de máquinas e equipamentos.
Sergio Machado Rezende é doutor pelo Massachusetts Institute of Technology, é Professor Titular de Física na Universidade Federal de Pernambuco e foi Ministro da Ciência e Tecnologia de 2005 a 2010 no Governo Lula.
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