Cachete - S. M. Antigamente, no Nordeste do Brasil, era assim que se chamava qualquer comprimido para dor.

quinta-feira, 19 de abril de 2012

Garanhuns: Perversão, Sangue e Flores

Garanhuns/PE

Tenho por Garanhuns uma paixão mal resolvida. Vou lá ao passado e lembro o perfume dos eucaliptos do Parque Euclides Dourado ou das flores que enfeitam seus jardins sempre bem cuidados. Tenho memórias olfativas e carinhosas de antigas férias passadas em casa da minha tia e do seu carinho ao me trazer um copo de leite com canela para encerrar a noite de jovem estudante preparando-se para o vestibular. 

Povo tímido, religioso e reservado onde o maior escândalo que se teve notícia em cinquenta anos tinha sido a morte do bispo assassinado por um padre. Mesmo na época da intolerância e preconceito contra a condição sexual (não gosto de chamar de opção), Lolita (já um senhor de meia idade) passava as tardes em uma cadeira na calçada cantando e bordando sem ser incomodada por ali pela Praça Dom Moura. 

Hoje, abro o jornal e vejo com horror que os novos tempos e a “modernidade” alcançaram minha cidade perfumada na pior forma da sua expressão: a perversão, a sociopatia, o canibalismo. 

Pessoas assassinadas e devoradas por doentes mentais sociopatas. Um choque! 

A imprensa fez seu papel e publicou o que devia e até mesmo o que não devia. A quem serviu publicar sobre a venda das empadas? Serviu para vender jornais? 

Pessoas revoltadas invadiram a casa dos acusados (agora réus confessos) e destruíram tudo. Quebrar e queimar eram a ordem da massa. Tudo foi queimado e destruído para que não houvesse a menor sombra do acontecido. Afastar da mente esse horror, demonstrar que nada daquilo era suportável foi necessário para os revoltosos. Era como afirmar: Não somos como eles. Mas, esqueceram que agindo assim funcionaram de forma semelhante, destruindo, picando e tornando irreconhecível. Destruíram valiosas provas que seriam preciosas para que se fizesse justiça. 

Mas, não bastava. Novas confissões ampliam o horror e fazem com que este bata na porta das casas de jardins floridos onde jovens estudantes poucos dias antes haviam se deliciado com guloseimas produzidas pelos sinistros comensais. Os jornais deliram como se dissessem: eles comeram a carne. Nós beberemos o sangue! 

Jovens profissionais da psicologia querem respostas. Todos fazem perguntas. Como? Por quê? Porque elas (as vítimas)? Porque eu? 

Pessoas adoecem só de pensar no horror da possibilidade de terem participado do sinistro banquete de forma inocente e passiva. A grande pergunta é: Será que eu também comi? 

Impressiona-me que até esse momento nenhum profissional foi chamado para falar ou mesmo intervir nessa calamidade psíquica que assombra o inconsciente coletivo da Cidade das Flores. Por quê? Nenhuma declaração, nada de vídeos, nem mesmo uma linha no rodapé de um jornal. 

Até quando vamos permitir que a perversão de uns possa se perpetuar em muitos? Se fosse uma bizarrice dos “realities shows” já se teria chamado “especialistas” nisso ou naquilo (nunca vi tanto especialista em coisa nenhuma como em nossos dias! Isso também me parece meio perverso). Mas para aliviar a dor de um povo, minimizar a culpa (seja real ou fantasiada) nada foi feito. 

Soube de casos de pessoas com anorexia por não conseguirem comer mais nada só de pensar na ideia terrível da comensalidade no banquete sinistro. Não resisti e eis-me aqui a escrever (é o vício “psi”) sem nem mesmo saber se serei lida. Como sempre faço elaboro em duas versões, uma para o povo e outra para a comunidade “psi” uma forma de intervenção para aliviar a dor. 

Tenho quase certeza de que não houve a horripilante distribuição de empadas e similares por parte dos criminosos. Não dá para negar o canibalismo, mas a distribuição me parece improvável. Por quê ? (mais um por quê?) Muito simples. Vou falar um pouco sobre perversão. 

O perverso realiza-se em grupo e em surdina. Faz alianças com seus iguais, mas esconde-se dos “diferentes”. Atua nas sombras. Representa uma normalidade que não possui quando está a descoberto. 

Outra característica do perverso é a covardia. Abusa de suas vítimas indefesas, mas recua se encontra adversários mais fortes. Transforma-se no coitado, no pobre, no miserável, no infeliz. Quer despertar no outro a piedade que não possui. É outra característica sua: o mimetismo. O camaleão do mal. 

Por fim, quando apanhado não consegue aceitar que o mal que fez possa ser estancado. Precisa continuar gozando. Como no velho samba que diz: Podem me prender. Podem me bater... O mal tem que continuar atuando (Quem não conhece o presidiário que continua comandando de dentro da cela seus esquemas criminosos?). Só que para continuar gozado o perverso precisa de novas alianças ( o corrupto, o “esquema”). 

Em Garanhuns foi assim. Teve de tudo. 

O canibalismo ocorreu, não há como negar. Mas creio que a ideia de convencer a comunidade de que haviam comido partes das vítimas foi a cartada final. Eles agora dormem tranquilos pois sabem que o mal que fizeram pode se imortalizar em cada pessoa que nesse momento sofre com a idéia de ter sido comensal do horror, de ter comido a empada ou a coxinha produzida por eles. O perverso é assim: quando acuado ele precisa convencer o outro de que é tão mal quanto ele – Eu comi! Mas você é igual a mim. É o sonho de todo perverso que se realiza; a persistência do mal, mesmo quando ele acaba. A aliança da mente perversa com uma impressa ignorante na melhor das hipóteses, ou comensal de sangue tanto quanto eles. 

Um psicanalista belga diz: O perverso não suporta a diferença. Funcionando como um grande intestino grosso, sua mente quer transformar todas as coisas que são boas ou belas em algo indiferenciado e de uma mesma cor. Em excremento. O bom e o belo são para eles o que deve ser picado, compactado e destruído. Foi feito! Continua sendo feito! 

Mas, precisamos recomeçar. Minha linda Garanhuns vai sobreviver. Precisamos intervir, parar de alimentar o mal. Legar o perverso e sua perversão ao esquecimento. Assim ele morre e seu mal também. 

Precisamos aprender a não banalizar a vida. A valorizar a pessoa e não as coisas. Precisamos calar a boca ou as letras da perversão que entra em nossos lares seja pelas caras televisões de plasma ou pelo gesto de intolerância e ausência de carinho e cuidado com nossos filhos, em nome de um “stress” que não precisamos ter. 

Faço minhas as palavras de Paulo o Apóstolo: “... Porque a nossa luta não é contra a carne nem contra o sangue, mas contra o que há de mal nas coisas divinas”. 

Marise de Souza Morais e Silva Santos – Psicóloga Clínica 
marise@artpage.com.br

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"Com o tempo, uma imprensa cínica, mercenária, demagógica e corrupta formará um público tão vil quanto ela mesma."
(Joseph Pulitzer)